*Isabel Clemente
Depois de 10 anos à frente da Promotoria da Infância e da Juventude de Mato Grosso do Sul, Ariadne Cantú, gaúcha, 45 anos, mãe de três (16, 12 e 2 anos), tinha uma certeza: vivera as experiências mais transformadoras de toda sua carreira. Mas não as guardou para si. Botou uma parte disso no papel. Seu primeiro livro de crônicas,
Retalhos de Verdades, inspirado em histórias de crianças vítimas de maus-tratos e abandono, está sendo relançado pela Editora Alvorada. O título deste post foi tirado de lá. A promotora de Justiça, escritora e poetisa publicou também livros infantis, entre os quais estão
Enquanto mamãe não vem, sobre crianças à espera de uma família nos abrigos, e
O planeta dos carecas, um abordagem lúdica sobre o câncer infantil.
Em entrevista por telefone ao
Mulher7x7, Ariadne revela que, além de não ter perdido um leve sotaque gaúcho, depois de mais de 20 anos no Centro-Oeste, é uma sensível observadora do universo infantil. “Crianças são feiticeiras, te contagiam com coisas boas, como o bom humor”.
A seguir, os melhores trechos dessa conversa.
Quando a senhora começou a escrever inspirada pela experiência de lidar com crianças em situações difíceis?
Ariadne Cantú – Eu sempre escrevi, desde mocinha, mas nunca tinha publicado. A vivência na Vara da Infância me deixava muito aflita, mas, ao mesmo tempo, a infância nos dá essa capacidade incessante de sonhar com algo cada vez melhor. A criança precisa acreditar que dá para ficar melhor. Eu mesma fazia isso, na minha infância. Levava uns molequinhos maltrapilhos da rua para casa, para tomar banho e comer. E eles voltavam outros. Todas as histórias de criança sempre me falavam muito fundo, na minha alma. Na vida profissional, foi forte demais. Eu escrevia para tirar de dentro do meu peito e botar em algum lugar. As histórias de Retalhos de Verdades são cenas congeladas na minha cabeça. Até hoje, e me emociono com elas.
O que a senhora percebeu nesses anos vendo crianças submetidas a situações tão tristes? Elas filtram a realidade para se proteger?
Na verdade, os mecanismos de defesa das crianças não estão desfocados da realidade. Às vezes, a percepção da realidade é muito maior do que as pessoas podem imaginar. Elas lidam de forma clara e concreta com o problema, mas sempre encontram maneiras de enfrentar com essa vontade de acreditar que o sofrimento não é para sempre. Isso eu boto nas crônicas. Lembro de um caso de uma menina, de menos de 8 anos, sem ninguém. A mãe estava internada num hospital psiquiátrico. A menina dizia “tia, eu quero crescer logo porque eu quero ser a mãe da minha mãe”. É uma frase forte. Ela tinha plena noção e queria salvar sua única referência de família, mas teve que ficar num abrigo.
Nesse tempo todo, alguma história lhe marcou mais por algum motivo em particular?
Foram muitas, mas algumas me falam mais alto. O Wellington foi uma vítima de maus tratos bastante severos. Uma das coisas que o padrasto fazia com ele, aos 2 aninhos, era afundá-lo num latão de água para ele acalmar. Sabe quando a criança sai em estado de choque depois de um susto e fica quieto um pouco? Esse menino chegou no abrigo tristinho, e ficou seis meses, até aparecer um casal de holandeses muito afetivo. Reencontrei esse garoto na Holanda, justamente quando ele estava começando a entender que não era filho biológico. Aí os pais ficaram pedindo para ele me dar um beijo e tal. Ele veio, beijou e depois limpou, como fazem as crianças. Os pais ficaram sem graça, mas eu estava satisfeita em ver que, apesar de tudo que ele tinha passado, estava resguardada uma identidade no fundinho do coração dele. Ele tinha vontades, opiniões. Ele já está adolescente e virá ao Brasil conhecer a mãe biológica. Ele foi adotado num processo de destituição de poder familiar, com quase 3 anos.
É sabida a preferência dos casais por bebês novinhos. No caso de crianças pequenas com um passado de maus-tratos, há dificuldades? Os candidatos temem a situação?
Depende do preparo. Hoje em dia está tudo melhor. Eu acompanhei o início do Estatuto da Criança e do Adolescente. Os Ministérios Públicos não estavam bem aparelhados, mas houve uma transformação de realidade. Se o casal é bem preparado, consegue trabalhar de maneira tranquila porque a vontade de ser pai e mãe deve estar acima de qualquer situação. Eu tive casos como o da menina Filomena, que perdeu as duas pernas. Ela foi adotada bebê, por um casal americano, que já tinha adotado um colombiano surdo e um indiano um pouco mais velho. Uma família muito bonita. Aqui no Brasil nós já vemos famílias preparadas para isso.
A burocracia da adoção está preparada para dar essa assistência ao casal, com auxílio de psicólogos, para explicar quais são as necessidades da criança?
Sim, tanto que muitos casais não conseguem adotar porque chegam lá sem pensar no que precisam oferecer, mas no que a criança pode dar. Se a motivação for a incapacidade de ter filhos por causa da idade avança, é uma motivação equivocada. Se é um casal que acabou de perder um filho, mesma coisa. Isso vai ter impactos lá na frente. Levamos muito tempo para chegar à consciência. Tudo isso custou muita injustiça contra as crianças. Eu mesma peguei casais que queriam devolver crianças depois de oito, dez anos. Teve o caso de dois irmãozinhos, adotados ainda bebês de colo que foram levados de volta ao abrigo com 8 e 9 anos. Os meninos entraram debaixo da mesa e ficaram cantando, num transe. Foi horrível. Fomos entender como tinha sido mal conduzido todo o processo. A criança não é um cachorrinho do qual você cansa quando ele começa a fazer cocô pela casa.Tivemos todo um trabalho para mostrar que isso não se desfaz assim. Os meninos voltaram a viver com a família mas tivemos que acompanhar por muito tempo pra ter certeza de que eles não seriam maltratados. Hoje, a lei não deixa fazer isso. Não se pode entregar crianças para casais despreparados. A destituição de poder pátrio segue critérios muito sérios, com direito à ampla defesa. Antes, era o famigerado código de menores. Eu vivi os resquícios desse tempo.
Qual é a pena que pais podem pegar por maltratar os filhos?
Varia. Dependendo dos casos, são enquadrados até como tortura, quando ficam caracterizados afogamento e marcas de cigarro, por exemplo. Tive muitos resultados com prisões preventivas, sobretudo nos crimes de natureza sexual contra crianças.
Quando a senhora ficava cara a cara com um adulto que viola sexualmente uma criança, como fazia para não voar no pescoço da pessoa?
(Ariadne ri) Eu escrevia. Certa vez, eu tinha pedido prisão preventiva de um homem, mas o juiz não deu. No julgamento, o réu começou a fazer uma descrição tão detalhada do crime, que o juiz saiu da sala de tão incomodado que ficou. Eu com o estômago revirado. Deve ter se arrependido de não ter decretado a prisão preventiva. Ao final, o réu saiu do tribunal preso. São relatos revoltantes, mas a prisão é a glória. São tantas situações… avôs violando netas, pais com filhas e até um caso de mãe com um filho de 4 anos eu peguei. A mãe era uma maluca.
A senhora chegou a alguma conclusão sobre o que motiva esses criminosos sexuais?
Uma vez eu assisti a uma palestra sobre pedofilia, de um psiquiatra canadense, num curso da Interpol em parceria com o Ministério Público de SP. E surgiu esse debate, sobre o motivo, sobre porque a maioria dos crimes é praticada por homens, e ele falou algo que ficou na minha cabeça. Ele mesmo disse que muitos discordavam do que ele ia falar, que até a mulher dele, também psicanalista discordava, mas, para ele, era uma questão de fascínio sobre a criança, que foi o início da nossa conversa. É fascinante ver como a criança se desperta para a vida, o senso de humor, é muito lindo. A mulher dá vazão a esse fascínio fisicamente falando ao pegar, amamentar, um universo do qual o homem não participa da mesma maneira. Os desvios de conduto, para ele, viriam daí.
Depois de lidar com a escória da humanidade de tão perto, porque não dá para usar outro termo com quem maltrata e viola crianças, a senhora perdeu um pouco de fé nas pessoas, ou muito pelo contrário?
Eu não deixo nunca de acreditar no ser humano, justamente porque as crianças têm esse poder de transformação. Elas sempre acreditam que tudo pode melhorar. Sempre. Daí eu penso como eu posso melhorar enquanto indivíduo. Não é privilégio meu perceber isso. Todos que trabalham na área da infância vivem de perto essas situações, de dor e sonho. É a realidade de todos os meus colegas Brasil afora. Eu continuo achando que é possível melhorar, como fazem as crianças nas histórias que acompanhei.
Abaixo, um texto do livro Retalhos de Verdades.
Tia, me arruma um pai.
Tia, me arruma um pai, senão eu vou fugir.
Tia, será que ainda não arrumaram um pai para mim?
Tia, pode ser qualquer um, mas tem que ser um pai.
Não precisa assim, ser importante, mas é preciso que saiba fazer pipa, que não beba, nem bata em ninguém.
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Isabel Clemente é editora-assistente de ÉPOCA em Brasília.
matéria disponível em:
http://colunas.epoca.globo.com/mulher7por7/2011/11/07/me-arruma-um-pai/